Tenho começado à pesquisado sobre o futuro do trabalho, na verdade o futuro da humanidade. Já foram vários materiais, tais como livros, artigos científicos, e matérias em revistas. De uma forma geral, as matérias em revistas, e as opiniões em posts e comentários passam uma percepção geral de que isto será um evento disruptivo que acontecerá em um futuro distante. Estão redondamente equivocados, não será um evento disruptivo e muito menos em um futuro distante.

Quanto ao futuro distante, os ciclos de desenvolvimento e adoção tecnológica estão cada vez mais curtos. basta observar o exemplo do smartphone, criado há 11 anos, em 2007, se tornando popular no Brasil a partir de 2013, quando atingiu 26% do mercado. Hoje sua vida gira em torno dele, uma tecnologia que mal completou uma década, e você não consegue mais conceber sua realidade sem ela. Isto lhe permite constatar que os ciclos de adoção tecnológica estão cada vez mais curtos, e isto vale para a automação do trabalho. Este gráfico, retirado de um artigo do Marketing Realist mostra isto bem claramente.

Evolução da adoção tecnológica
Reprodução Marketing Realist

A Amazon há muito tempo automatizou o trabalho do livreiro, e vive te fazendo recomendações interessantes. A Netflix, Facebook, Google, Twitter e outros estão sempre atentos ao que você faz para lhe recomendar conteúdo sob medida. Não existe nenhuma interação humana, o único humano neste processo é você. Os algoritmos destas empresas fazem um tremendo trabalho, traçando seu perfil psicométrico e registrando seus gostos, comparando-os com milhões de outros, para aprimorar a sua experiência como usuário.

Esta automatização, segundo Shoshana Zuboff é parte do conceito que ela cunhou, e vem desenvolvendo: Capitalismo de Vigilância. Ela a chama de hiperescala, que se dá através da crescente automação, e tecnologias escaláveis em nuvens, que permite que estas empresas operem com efetivos cada vez menores, tendo os algoritmos como “meio de produção”. Esta independência estrutural das empresas em relação a população, é uma questão de excepcional importância à luz da relação histórica entre capitalismo de mercado e democracia, segundo ela a própria democracia está ameaçada. Compreender as idéias de Zuboff é muito importante para compreendermos a mudança que estamos vivendo, por isto recomendo seu novo livro: The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power.

Se você fizer uma análise detalhada do que mudou nos últimos cinco ou dez anos em termos de tecnologia e estilo de vida, e projetar para frente usando uma variável que considere os encurtamentos dos ciclos tecnológicos, vai perceber que em cinco ou dez anos o mundo poderá ser muito diferente de hoje, assim como perceberá que não haverá uma grande disrupção. Você não vai acordar e perceber que seu emprego acabou, e observar o caos nas ruas a partir de sua janela, isto acontece nos filme de ficção, não na vida real.

Houveram pequenas disrupções, que não são efetivamente fenômenos novos. Michael Porter já havia observado as disrupções em 1979, quando concebeu o modelo das cinco forças do mercado, onde uma delas ele chamou de “Ameaça de produtos substitutos“.

Veja a economia de plataforma, quando você pede um UBER, todo processo é mediado por algoritmos, os únicos humanos neste processo são você e o motorista. E em breve nem mesmo o motorista vai existir, permitindo a UBER obter lucro pela primeira vez. Aqui temos uma bifurcação interessante no cenário: Se o carro autônomo se tornar economicamente viável, o UBER faz lucro, e todo processo será automatizado, por outro lado, se a adoção do Carsharing amadurecer a ponto de termos um carro disponível sempre que necessário, bastando apenas ativa-lo com seu celular ou cartão de crédito, podendo deixa-lo em qualquer lugar, poderemos ver o fim da UBER também.

A NETFLIX por exemplo, acabou com as locadoras de vídeo e reduziu a pirataria, ao apresentar um modelo de negócios inovador… inovador? Na verdade foi a Apple que inventou a venda de músicas isoladas, mudando o mercado das gravadoras, e enfraquecendo as redes torrents e a pirataria. Alias por falar em gravadoras, me lembro quando trabalhava com áudio na década de 80 e visitei os estúdios da Som Livre, um estúdio daquele porte demandava investimento da ordem de centenas de milhares de dólares. Vinte anos depois visitei um estúdio bem menor, mas com uma capacidade técnica igual, mas que deve ter custado na casa de poucas dezenas de milhares de dólares. Se você nasceu no final do século XX ou já no século XXI, deve estar acostumado(a) com estes saltos evolutivos, a ponto de nem mesmo percebe-los.

Em todas empresas citadas, temos em comum um ativo importante: os dados. UBER, Amazon, Google, Waze, Netflix e muitos outros coletam dados massivos, por exemplo quem conhece melhor as demandas de transporte de pequeno porte que o UBER, ou o trânsito da cidade que o Waze? Existindo dados em volume significativo, é possível modela-los criando ativos valiosos.

Robôs e Inteligência artificial

Outro ponto interessante que tenho observado é uma visão um tanto quanto metafórica das pessoas em relação a robotização e inteligência artificial. Existe uma tendência muito comum em humanizar a tecnologia. É difícil imaginar um robô que nem mesmo exista fisicamente como os complexos algoritmos do UBER, Facebook e Google por exemplo. E a inteligência artificial então. Tendemos a imagina-la como a nossa inteligência, enquanto computadores não fizerem complexas operações cognitivas como nos, os humanos, ela não aparentará uma ameaça real, aprendemos isto nos filmes. Mas isto não é assim, é bem diferente e sutil.

Howard Gardner, após inúmeros experimentos, sistematizou em 1983 a teoria das inteligências múltiplas. Pelo estudo de Gardner, o ser humano não possui apenas uma inteligência, mas pelo menos oito dimensões de inteligência: Linguística, Musical, Lógico Matemática, Visual Espacial, Corporal Cinestésica, Interpessoal, Intrapessoal e Naturalista. Gardner acredita que todos nós temos estas dimensões de inteligência, e o que nos difere é a dimensão individual em cada uma delas.

Trazendo a perspectiva de Gardner para a inteligência artificial, podemos dizer que existem milhares, senão milhões de dimensões em inteligência artificial, são dimensões muito específicas, porem extremamente eficazes e precisas. Por exemplo, o reconhecimento facial, algoritmos bem treinados possuem uma capacidade muito superior a humana para reconhecer rostos, mesmo que estejam disfarçados. Assim funciona a inteligência artificial para identificar patologias, riscos diversos, e etc… Por esta perspectiva você percebe o quanto já esta cercado(a) de inteligências artificiais muito superiores à nossa.

E o futuro afinal?

Minha pesquisa neste campo ainda esta na fase inicial, a minha motivação tem sido a curiosidade e uma paixão que nutro desde criança, pelo futuro. Pretendo deixar a seguir mais questões abertas do que respostas, estas pretendo apresentar enquanto forem surgindo. Com relação à pesquisa, tenho adotado uma perspectiva sistêmica, alias é sem dúvida a perspectiva mais adequada, pois as próprias metodologias de estudos futuros como “Future Wheel”, Simulações e Jogos, ABM e Analise de Impacto Cruzado, consideram a necessidade de uma perspectiva holística, sistêmica.

Digo isto porque não se pode prever o futuro do trabalho, apenas olhando pela ótica do trabalho, ou fazendo projeções de demanda do mercado, isto não é futurologia, são apenas projeções. Se juntar estas projeções às inúmeras forças, eventos e indicadores da sociedade e do planeta será possível estabelecer diversos cenários, e ai sim, fazer futurismo.

Por exemplo, temos de considerar as questões ambientais e os movimentos em torno delas, as patologias digitais, questões demográficas, questões econômicas e do mercado, inovação tecnológica, a desumanização e pós-humanismo. Estes são apenas alguns pontos, mas já me permitem desenvolver uma farta gama de projeções e cenários.

Com relação ao meio ambiente, vemos que a cada dia, a exaustão progressiva provocada pelo ser humano tem colocado em risco a própria humanidade, a partir de que ponto a matriz de força que governa este tema levará a mudanças significativas? O aquecimento global e os continentes de plástico do Pacífico estão nas manchetes, são realidade. Tem gente pensando em colonizar Marte, mas me parece muito menos complicado salvar a terra. Disto faço uma leitura de que para salvar a terra, teríamos de abrir mão do consumismo, do modelo capitalista, mas me parece que na verdade estão pensando no lucrativo negócio de colonizar Marte, quando exaurirem o planeta, acredito que nenhum de nós que esta lendo este texto terá condições de mudar para lá.

O que serão das grandes indústrias de capital intensivo como as ligadas ao petróleo, por exemplo, se houverem mudanças significativas tanto no mercado de veículos a explosão, quanto no uso de produtos derivados de petróleo? Imagine uma larga adoção de veículos elétricos ou por outro lado, ou até de forma concomitante, ou não, a adoção de veículos de uso compartilhado?

Tomemos a energia elétrica como outro exemplo, a infraestrutura e o custo, inclusive ambiental para a produção e transmissão de energia elétrica movem um mercado gigantesco. Mas hoje em dia temos equipamentos elétricos cada vez mais eficientes, iluminação LED, hoje consomem pelo menos dez vezes menos, técnicas construtivas modernas permitem criar ambientes com temperaturas confortáveis sem necessidade de ar condicionado, e mesmo onde eles existem, assim como geladeiras e outros motores elétricos, estão adotando tecnologia Inverter, com consumo muito menor. Não estamos muito distantes do momento onde poderemos gerar a eletricidade que necessitamos através de painéis fotovoltaicos, armazenando o excedente em eficientes baterias.

As impressoras 3D, quando surgiram pareciam brinquedos, hoje já imprimem alimentos, casas, carros, próteses, órgãos humanos para planejamento cirúrgico, e objetos em geral. Assim como a venda de produtos digitais como e-books, músicas e vídeos impactaram na logística do mercado, a adoção e ampliação do escopo de impressoras 3D podem mudar o processo industrial e logístico que conhecemos, assim como a medicina. Neste aspecto do desenvolvimento tecnológico, não podemos deixar de falar da nanotecnologia.

Questões demográficas precisam ser consideradas, não só o envelhecimento da população e da força de trabalho, como seu crescimento, a projeção no Brasil por exemplo é de que em 2025, 56% da força de trabalho tenha mais de 40 anos, e que a população chegue na casa dos 300 milhões.

É importante avaliar as questões, movimentos e tecnologias por diversas perspectivas, através da práxis e observação dialética, pois há pontos positivos e negativos em todas que podem impactar na sua viabilidade e/ou interação dentro do conjunto sistêmico analisado.

Existem consequências decorrentes da tecnologia, as redes sociais e smartphones produzem uma série de patologias como: Déficit cognitivo, perda da noção da realidade, perda da autonomia, FoMo, dentre inúmeras outras. O excesso de informação pode estar provocando o retrocesso conservador que estamos assistindo, assim como a polarização da sociedade.

Ao delegar aos aplicativos nossas decisões, como quando delegamos ao Waze escolher nosso caminho, ou ao Netflix nossa sugestão de filme, estamos entregando nossa autonomia, as redes sociais se comportam como relacionamentos tóxicos, crianças na mais tenra idade iniciam sua vida social em frente a uma tela, ignorando as pessoas em sua volta, sem ter quem imitar, poderão ter dificuldades sociais e cognitivas no futuro.

A ansiedade que nos faz checar o smartphone a toda hora, somadas ao excedente informacional provocam mais ansiedade e stress. As bolhas de informação criadas pela interação com os algoritmos nos isolam do mundo e restrigem nossas opções e criatividade, a desinformação provocada pelas fake news, e todo conjunto da desordem informacional, nos deixam sem referencial da realidade. E por fim a poluição eletromagnética produzida pelas redes sem fio, pode estar nos deixando doentes e matando as abelhas.

Como pode ver, temos muitos desafios pela frente, estamos desde o inicio do século XX numa cruzada para nos desumanizarmos, nos transformando em máquinas de trabalho eficientes, e consumidores contumazes, até no processo seletivo somos classificados e rotulados como produtos em uma prateleira.

Não há dúvida que milhões de postos de trabalho, nas mais diversas áreas e níveis serão eliminados, não haverá emprego para todo mundo, poderemos ter mais desempregados do que empregados dentro de dez anos, ou menos. Apesar das perspectivas otimistas de Klaus Schwab em A Quarta Revolução Industrial, onde ele prevê um boom de oportunidades na construção da indústria 4.0, temos de considerar as variáveis demográficas que podem indicar um déficit relativo frente a uma realidade absoluta. O que pode acontecer em uma sociedade com este nível de desemprego é uma incógnita, um rizoma de possibilidades.

Algumas questões estão sendo debatidas, a educação para o futuro e a renda universal, há países preocupados com elas, outros que estão indo na contramão. O projeto P21, o projeto Leading Education 2030 da UNESCO e o projeto para educação no século XXI da Think Strategic são algumas das iniciativas educacionais focadas no século XXI. Com a substituição massiva da mão de obra por robôs, a educação profissional poderá perder importância, não fará sentido aprender um ofício que esta se tornando humanamente obsoleto. A educação, mesmo a profissional poderá ser mais generalista e profunda, de Latu para Strictu, ampliando as perspectivas de saber e cognição do indivíduo com a valorização de sua humanidade, dando às ciências humanas um significado e importância tão grandes quanto a própria sobrevivência da humanidade.

Douglas Rushkoff em seu livro Team Human, reforça esta tese, para ele, para sobrevivermos à esta revolução digital, teremos de nos tornar mais humanos, valorizar nossa humanidade. Nesta palestra do TED, ele conta uma história que foi convidado por magnatas do Vale do Silício, que queriam saber o que fazer depois do “evento”, quando o dinheiro não tiver mais valor, prevendo o fim do capitalismo…

https://www.ted.com/talks/douglas_rushkoff_how_to_be_team_human_in_the_digital_future

Agora é pensar e analisar, muitos cenários, muitas variáveis e muitas possibilidades, nos tornarmos mais humanos, no sentido amplo da palavra é o primeiro passo. Outro passo importante esta nas mãos dos governos, que devem reforçar e aumentar significativamente a camada de proteção social, com o volume de desemprego eminente se não tivermos saúde, educação e serviços essenciais públicos e gratuitos poderemos entrar em colapso. Muitos dos que hoje tem acesso à saúde privada, perderão este benefício quando perderem seus empregos. A saída para se manter no mercado de trabalho será através da educação, aprendendo a ser mais humano, e novas competências para um novo mercado, se não for publica e gratuita, como ele poderá se beneficiar? Muitas outras coisas poderão mudar, e por isto é importante que todos estejamos preparados, estas crianças parecem estar.


Publicado no LinkedIn Pulse em 01/05/19, no Medium em 03/05/19 e no Panspectron em 11/07/2019


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João Carlos Rebello Caribé

Consultor em otimização empresarial, com foco em inovação estratégica, gestão do conhecimento, gestão de projetos e processos, e micropolítica corporativa. Professor em MBA em disciplinas das áreas de gestão Empresarial, Marketing, Logística e Recursos Humanos. Mestre em Ciência da Informação pela UFRJ (PPGCI) com o tema “Algoritmização das relações sociais, criação de crenças e construção da realidade”. Empreendedor desde o início de sua carreira, foi sócio em quatro empresas desde então. Com a chegada da Internet no Brasil no final dos anos 90, desenvolveu uma empresa revolucionária, a Flash Brasil, tornando-se referência com um modelo de negócios inovador envolvendo comunidades virtuais com milhares de profissionais. Foi conselheiro para o primeiro Conselho de Coordenação da NETmundial Initiative, junto com profissionais como Jack Ma (Alibaba), Christoph Steck (Telefonica), Penny Pritzker (Departamento de Estado Americano), James Poisant (WITSA), Lu Wei (Ministro do Ciberespaço Chinês), Jean-Jacques Subrenat (EURALO), dentre outros. Também foi membro do Comitê Executivo da NCUC na ICANN, representando a sociedade civil da América Latina e Caribe. Participa da Internet Society Brasil, Coalizão Direitos na Rede, Red Latam, Comunidade Diplo, Dynamic Coalition on Network Neutrality e Global Net Neutrality Coalition, Laboratório em Rede de Humanidades Digitais (LarHud) e Estudos Críticos em Informação, Tecnologia e Organização Social (Escritos).

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